A heteronormatividade como empecilho no desenvolvimento de histórias (ou: porque casais héteros são sempre chatos na ficção)

fernanda.
4 min readSep 9, 2017

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A história começa assim: tem uma mocinha. A mocinha conhece um mocinho. Eles se apaixonam. Alguma coisa absurda acontece para impedir que eles fiquem juntos. O amor vence, eles se casam — ou, pelo menos, prometem casar — e vivem felizes para sempre. Fim.

Eu sei que você sabe de que história eu estou falando, e eu sei que você pensou nessa história enquanto lia — porque é a história de uma maioria devastadora das histórias com casais heterossexuais que a gente vê na ficção. Não que isso em si seja uma coisa ruim; nada se cria, tudo se copia, é uma simples questão de saber trabalhar com o que você está copiando.

O problema é que dificilmente é.

Observem que na minha história eu não falo porque eles se apaixonam. Não é só porque era para ser um resumo genérico — é porque na maioria esmagadora das vezes, não tem um motivo para eles se apaixonarem.

Acontece assim: a mocinha encontra o mocinho e se sente atraída por ele, e ele por ela. Os dois se apaixonam. Não tem um meio do caminho, e quando tem é muito pouco convincente — eles não tem gostos em comuns, não tem opiniões comuns, tem personalidades absurdamente diferentes; o que alimenta o amor deles é o drama do enredo tentando impedir seu relacionamento, beijos na chuva/no baile/na praia/algum outro lugar/situação comumente romantizados (ou inusitado — como um campo de batalha, uma prisão ou alguma outra situação onde a última coisa na sua cabeça seria um beijo), e, é claro, as incontáveis frases de efeito que fazem parecer que o que eles sentem é muito intenso e indomável.

Agora, vamos voltar um pouco no tempo — em agosto de 2002, Avril Lavigne lançava a música cuja letra segue sendo a melhor explicação para esse fenômeno:

He was a boy,
She was a girl,
Can I make it anymore obvious?

Porque é exatamente o que acontece nessas histórias: seus autores e idealizadores não investem nos relacionamentos heterorromânticos porque esperam que o fato de ser um homem e uma mulher seja convincente o bastante para o público geral.

E o pior é que na maioria das vezes, realmente é.

Heteronormatividade é algo tão enraizado na gente que naturalmente esperamos não apenas que todos sejam heterossexuais, mas que tudo acabe em heterossexualidade — é só ver o sem número de gente que acha que não pode existir amizade entre homens e mulheres. É como se acreditassem que a heterossexualidade fosse algum tipo de mágica que tome conta da situação se duas pessoas do sexo oposto passarem tempo demais juntos.

Isso se reflete na ficção, também — para quê um autor ou roteirista vai gastar tempo da história construindo o romance de seus personagens e tornando-o convincente se já é convincente por natureza? Todo mundo vai aceitar que estão apaixonados só porque homem e mulher em posição de protagonismo não poderiam ter um fim diferente; é muito melhor avançar na história e trabalhar nos aspectos mais “interessantes” e “importantes” que é a parte divertida, e deixar o desenvolvimento real da dinâmica do casal acabar nas frases bonitinhas que vão ser usadas numas imagens de fundo cheio de florzinha e postadas no facebook no dia dos namorados.

É muito diferente do que acontece com casais homorromânticos (mesmo heterorromânticos porém não-cisnormativos; isto é, com personagens trans). Já cansei de ver comentários reclamando de casais homorromânticos dizendo que “não faziam sentido”, que eles eram “só amigos” — em histórias que desenvolviam com muita profundidade esses relacionamentos. As pessoas não querem acreditar que pessoas do mesmo sexo ou pessoas trans possam se apaixonar e viver um romance; não importa o quanto se invista em seus relacionamentos, eles sempre terão sua validade questionada por alguém.

Exatamente como na vida real.

Mas aqui eu não estou querendo fazer uma crítica social; não estou aqui para repetir coisas que são ditas constantemente. Estou aqui para falar de ficção, e de construção de histórias, e de desenvolvimento de relacionamentos entre personagens. Porque deveria ser obrigação do idealizador e criador da obra dar a ela seu devido desenvolvimento — e isso não inclui assumir que seu espectador ou leitor vá aceitar o que foi escrito sem que faça sentido; mesmo que seja de fato o que vai acontecer.

Não são só os consumidores que merecem um produto melhor do que isso; suas personagens merecem mais respeito do que isso.

Existe o lugar comum entre criadores de histórias de que nossas personagens são criaturas vivas — é inevitável que ganhem vida própria dentro de nós, e que nós nos apeguemos a elas como se fossem, de fato, reais. Então, é preciso respeitá-las como tal — respeitá-las como se fossem reais. E pessoas em relacionamentos heterorromânticos saudáveis certamente se apaixonaram por seus parceiros por certos motivos. E qualquer pessoa, de qualquer orientação ou gênero, vai concordar que existem certas condições para que seus relacionamentos deem certo, e que se essas condições não forem realizadas eventualmente, o relacionamento estará fadado ao fim; e não ao felizes para sempre que todos esses livros prometem vir tão fácil para pessoas que nada tem em comum.

Então, talvez fosse hora de investir menos em sogras malvadas, ex-namoradas vingativas e profecias cruéis atrapalhando a vida do seu mocinho e da sua mocinha — se analisarem um pouco a dinâmica deles, vão acabar percebendo que eles mesmos são a maior pedra no caminho da sua união eterna.

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Written by fernanda.

29, formada em Letras pela USP, lésbica. escritora de mentira, professora nas horas vagas e capopeira em tempo integral.

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